quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

AS TRÊS LIÇÕES DO TIO GUGU, O DOCE COMUNISTA

Uma das melhores figuras que Deus colocou em meu caminho nesta vida foi meu tio Gugu.
Seu nome era Juvenal Jacinto de Souza, jornalista e tradutor. Hoje, mais de trinta anos depois de sua morte, dá nome a uma praça no bairro da Serraria, em Porto Alegre, onde morou durante quase a vida toda. Nossos caminhos se cruzaram quando ele casou com minha tia Edith, a Deth, irmã do meu pai. Juvenal foi descrito por um amigo famoso, Érico Veríssimo, como um “homem tão tímido que parecia pedir desculpas por estar vivo”. Só que o autor de “O Tempo e o Vento” complementava; “mas não se enganem diante de tanta mansidão. É homem de convicções firmes, de uma só palavra”. Tanto que acabou passando um ano na cadeia, preso pela ditadura de Getúlio Vargas, episódio sobre o qual ele pouco falava.
Gugu e Deth moravam numa casa simples, perto do rio Guaíba, e passar uns dias lá era sempre muito bom. Eu adorava conversar com ele; mesmo sendo de poucas palavras, Gugu era um homem vivido, culto e dono de um fino senso de humor. Devo a ele pelo menos três coisas que levei para o resto da vida.
A primeira foi me ensinar datilografia. Compartilhando a Hermes Baby (quem não sabe o que é, favor ir no Google e procurar por “máquina de escrever”), que ele usava para ganhar a vida, aprendi a dominar os mistérios do teclado, técnica que me ajuda até hoje a redigir meus textos. Gugu foi um mestre dedicado e paciente.
A segunda foi um trocadilho em italiano; “traduttore, traditore”, tradutores são traidores. Falava isto ao comentar a dureza de sua profissão; existem palavras e expressões que não têm equivalentes em outros idiomas, portanto todo o tradutor tem que fazer algum tipo de adaptação no texto. Isto configurava a “traição” inevitável. Até hoje uso isto em aula, quando lembro, por exemplo, que a tradução correta de “Project” não é “Projeto” e outras assim. Onde quer que esteja, tenho certeza que Gugu deve dar boas risadas quando vê as besteiras do “Google Translator”, por exemplo.
Mas a terceira e, certamente, a mais importante, veio logo depois do AI-5, que acaba de completar 50 anos de triste memória. Os ânimos estavam exaltados e eu, com meus 17 anos, desprezava tudo o que fosse “reacionário”, ou seja, a favor dos militares. E meu alvo preferencial era o escritor e jornalista Nelson Rodrigues, que assinava colunas diárias apoiando a ditadura. Obviamente, Gugu tinha muito mais razões que eu para odiar os militares e seus apoiadores. E foi isto que tornou este diálogo inesquecível para mim.
Ele chegou com o jornal na mão e me perguntou, em gauchês perfeito;
- Tu leste a coluna do Nélson Rodrigues hoje?
O gênio adolescente aqui, conhecedor profundo de todas as verdades da vida, respondeu com a arrogância peculiar;
- Não perco meu tempo com este reacionário imbecil.
A resposta veio rápida, num tom que, para um sujeito como ele, era quase agressivo;
- Pois não sabes o que estás perdendo...
E isto foi só o começo. Durante cerca de dez minutos Gugu falou sem parar (seguramente um recorde para ele) sobre a importância de ouvir as boas ideias, independente do viés político, sobre como Nélson era brilhante e tinha que ser respeitado e admirado, e mais um monte de coisas.
Quando finalmente ele voltou à sua calma e mudez habitual, o sobrinho imbecil aqui havia entendido uma grande lição; não existe dono da verdade. Ouvir o outro lado é sempre importante. Porque existem pessoas tão boas ou melhores que você que acreditam em coisas diferentes, seja o assunto política, religião, futebol ou qualquer outro. E você vai aprender com elas, sempre.
Tenho certeza que Gugu deve estar muito triste com os rumos que o Brasil tomou, com os erros da esquerda em que ele tanto acreditava e, principalmente, com a pobreza aviltante do nosso debate político atual. Pelo menos uma alegria posso dar a ele; o sobrinho aqui ouviu e aprendeu. De lá para cá sempre gostei de debater e me posicionar em todo o tipo de assunto, antes e depois da internet, e me orgulho de dizer que jamais ofendi ou deixei de ouvir alguém. Muito por força da bendita lição do meu tio comunista, que não disfarçava sua admiração por um reacionário brilhante.
Gugu, meu doce tio comunista. Saudades de você!