quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Geraldo Eustáquio / Letícia Lanz – a inteligência que arrasa com o preconceito

No início dos anos 2000 conheci, em um encontro gerencial da Petrobras, um consultor chamado Geraldo Eustáquio. Participei de alguns eventos coordenados por ele, e sempre me chamou a atenção por sua inteligência e bom humor. Cito até hoje, em sala de aula e em eventuais artigos, algumas das lições que aprendi com ele, e de vez em quando acompanhava seus textos e poesias pela internet.
E foi pela internet que fiquei sabendo, há algum tempo, que ele resolveu adotar uma identidade feminina, com o nome de Letícia Lanz. Na última segunda-feira, quando assistia o programa “Papo de Segunda”, um dos últimos refúgios de inteligência que restam na TV brasileira, vi que Letícia Lanz era a convidada de honra. E ela (ou ele) fez um belíssimo papel, mesmo enfrentando a concorrência dos quatro craques que formam o time permanente do programa (Marcelo Tas, Leo Jaime, Xico Sá e João Marcelo).
Letícia/Geraldo contou sua história com simplicidade, inteligência e bom humor, exatamente como nos tempos de consultoria na Petrobras. Era um homem inteligente, e a impressão que tive é que agora, livre dos seus fantasmas mais íntimos, ficou ainda melhor (não sei se devo chama-lo de “mulher inteligente”; é um ser humano inteligente, e fim de papo).
O mais legal é que ele recusou-se, o tempo todo, a cair na armadilha do coitadismo, do sofrimento, da dor do preconceito, enfim, esta ladainha “politicamente correta” que já se tornou prá lá de chata. Geraldo virou Letícia e pronto; não quer revanche, não ergue bandeiras, não tem ódio no coração. Porque a guerra contra o preconceito não se ganha apenas em batalhas épicas, com passeatas e decisões judiciais; é muito mais eficiente a guerrilha da inteligência, do talento e da convivência no dia a dia. Neste ponto um grande momento do programa foi quando Marcelo Tas, que é pai de uma filha que virou filho, deu um depoimento bem humorado sobre o assunto, citando sua outra filha que, com apenas nove anos na época, foi a pessoa que entendeu com mais facilidade que a irmã agora era irmão. A menina apenas falou; “prá que tanto mistério, ela (ou ele) sempre foi assim!”. Raciocínio infantil, simples e genial. Sem necessidade de cartilhas complexas ou manifestações de rua para ensina-la.
Pessoal; quem não viu, procure o programa no site do GNT, vale a pena desfrutar de uma hora de inteligência e humor de qualidade, coisa quase inexistente no Brasil de hoje, polarizado, agressivo e burro, infelizmente. Fiquei orgulhoso de um dia na vida ter participado de vários debates com Letícia (que na época era Geraldo, mas isto é o que menos importa). E mais uma vez fiquei certo que a maior arma contra o preconceito não é a imposição da neurose politicamente correta que, muitas vezes, não passa de um outro preconceito, às avessas; é a conversa inteligente e, acima de tudo bem humorada.
O resumo da história é; Geraldo, depois de ter nascido homem, ter sido marido, pai e avô, decidiu ser Letícia. Está feliz assim, e cada vez mais talentoso. Um ser humano dos melhores que conheci, um tipo que orgulha a espécie. Usando a linguagem de futebol, que eu adoro, a história dele é uma espécie de 7x1 no preconceito. Sem vitimismo nem lágrimas, pelo contrário, com muito bom humor. Como tem que ser.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

DE ROMÁRIO A NEYMAR, A ETERNA QUESTÃO; COMO LIDAR COM UM CRAQUE QUE EXIGE TRATAMENTO DIFERENCIADO?

Corria o ano de 1993, e a seleção brasileira se preparava para uma partida decisiva contra o Uruguai pelas eliminatórias para a Copa do Mundo do ano seguinte, que seria disputada nos Estados Unidos. Era o último jogo (naquele tempo as eliminatórias ainda eram disputadas em grupos menores, depois foi que passaram para o formato atual de todos contra todos), e o Brasil, em caso de derrota, estaria fora de uma Copa do Mundo pela primeira vez na sua história.
Romário, sem dúvida o maior craque daquela geração e um dos maiores da história do futebol, estava banido da seleção pelos treinadores Parreira e Zagalo, por conta de diversas estripulias que havia aprontado e que não vamos citar aqui para não alongar muito o texto. Só que o jogo era de vida ou morte e Careca, o centroavante titular, estava fora de combate. Bebeto, o segundo atacante, era dúvida (acabou jogando), e a formação com os dois reservas, Evair e Valdeir, tinha fracassado no jogo anterior contra a Venezuela quando o Brasil, mesmo ganhando, deixou o campo sob uma intensa vaia. No mesmo fim de semana o exilado Romário, com a camisa do Barcelona, tinha uma atuação de luxo no clássico contra o Atlético de Madri, com direito a três gols, sendo um por cobertura.
Depois de uma tensa reunião entre os membros da comissão técnica chegou-se à conclusão que o negócio era engolir todos os sapos e chamar o baixinho de volta; a fúria da torcida em caso de derrota poderia se tornar incontrolável. Romário – que, como acontece com os craques de verdade, sempre se agigantou nas decisões – deu um verdadeiro show de bola, marcando os dois gols do jogo, foi definitivamente perdoado e acabou sendo a grande referência técnica do time que, aos trancos e barrancos, foi campeão do mundo no ano seguinte.
Oito anos depois, Romário voltou a ser o centro de uma polêmica, ao ser mais uma vez cortado do grupo da seleção brasileira pelo novo técnico, Felipão. O motivo foi o mesmo de sempre; craque dentro de campo, egoísta e desagregador fora dele. Os tempos eram outros, oito anos em futebol cobram o seu preço, e Romário não era mais um jogador tão decisivo quanto fora em 94. Felipão preferiu apostar na sua disciplinada “família Scolari” e bancou como centroavante um Ronaldo Fenômeno fisicamente frágil, recuperando-se de quase dois anos de inatividade com direito a cirurgias e mais cirurgias. O Brasil foi campeão, Ronaldo foi o artilheiro decisivo, Scolari saiu como herói (naquele tempo ninguém sonhava com o vexame de 2014), e Romário se aposentou pouco tempo depois.
A conclusão que podemos tirar disto tudo é que existem sempre maneiras diferentes de lidar com uma questão, e todas podem levar ao sucesso e ao fracasso. Até que ponto uma comissão técnica deve ceder às exigências de um fora de série indisciplinado? Como toda a discussão sobre futebol, esta pode durar até a morte, ou até acabar a cerveja, o que vier primeiro. Só para embaralhar mais a situação contamos dois “causos” em que atitudes diametralmente opostas levaram ao sucesso. Repetindo o mantra utilizado por dez entre dez consultores na área de projetos, onde atuo, “cada caso é um caso”.
Falei tudo isto para chegar em Neymar, o nosso gênio-rebelde da vez. Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que existe uma diferença enorme entre os dois; Romário é, acima de tudo, um gênio preguiçoso e divertido, definido magnificamente por Tom Cavalcante na frase “treinar prá que, se eu já sei o que fazer”. Romário sabia o que fazer, tinha uma confiança ilimitada no seu potencial, portanto não gostava de treinar nem de correr muito em campo. Uma atitude arrogante, sem dúvida, mas revestida de uma simpática “malandragem suburbana”. Tanto é que Romário raramente era expulso, e não colecionou inimigos no futebol. Neymar, fruto de um tempo diferente, onde a superexposição na mídia exagera tudo o que um ídolo diz ou faz, é um garoto mimado, multimilionário, que não gosta de ser contrariado e se porta quase sempre de forma agressiva, tentando sempre humilhar os outros nas vitórias e perdendo a cabeça com extrema facilidade quando seu time está sendo derrotado.
Tite, o gerente da vez, tenta ajeitar as coisas, com seu estilo elegante e falar rebuscado, mas o problema é, basicamente, o mesmo; como controlar as vontades de um jogador que sabe que é muito melhor que os outros, e quer receber um tratamento diferenciado por isto. O último cartão amarelo que Neymar levou me parece característico disto; num jogo decidido desde o primeiro tempo, contra um adversário muito inferior, ele tantas fez que arranjou uma encrenca e levou o amarelo que o suspendeu do jogo seguinte. A atitude foi tão grotesca que permite que se levante a suspeita; será que foi de propósito? Afinal, Neymar se livrou de uma viagem à Venezuela sem o menor atrativo, e, cumprindo suspensão em um jogo teoricamente mais fácil, acabou preservado para o clássico contra a Argentina. Bom prá todo mundo... Diga-se de passagem, se a ideia era receber o cartão de forma proposital, bastava interceptar uma bola com a mão – não precisava quase sair na porrada com os bolivianos. E se realmente o problema foi o temperamento de Neymar, um justo e simples castigo seria obriga-lo a viajar junto com o grupo e cumprir a agenda de treinos, e não dar-lhe uma folga como “prêmio” pelo cartão bobo que tomou.
Resumindo, a história de Neymar ainda está em andamento, portanto não podemos dizer ainda se a forma de agir de seus gerentes deu certo ou deu errado. Só o futuro e os resultados dirão isto. Lembrando sempre que a sorte faz parte deste jogo; nunca é demais lembrar que Romário foi campeão do mundo em 94 num campeonato decidido nos pênaltis. E que, no pênalti que ele próprio bateu (por imposição dele, que, obviamente, não tinha treinado cobranças, segundo depoimentos de quem estava lá), a bola tocou a trave e, caprichosamente, acabou entrando, do mesmo jeito que poderia ter saído. Tenho certeza que os deuses do futebol sempre estão a favor dos grandes craques, sejam bad boys ou não, e deram uma forcinha prá bola entrar... Romário merecia.
O assunto é longo e merece mais um texto mas, por enquanto vamos ficando por aqui. Até a próxima.