sexta-feira, 6 de junho de 2014

O DIA EM QUE RECEBI UM RECADO DE DEUS

Embora seja um sujeito extremamente crítico, ácido e irônico por natureza, também tenho o direito a um momento de pureza tipo “encontrei Jesus”, ou algo assim. Este “causo” aconteceu quando fui dar uma aula em Fortaleza, há uns sete ou oito anos, mais ou menos. Cheguei lá numa sexta-feira, para ministrar um curso que ocuparia o sábado todo e boa parte do domingo. É claro que uma viagem destas não é exatamente de lazer, mas mesmo assim sempre se arruma um tempinho para dar uma caminhada pela beira da praia, comer um bom pastel de camarão, enfim, desfrutar destes pequenos prazeres que tornam a vida mais agradável.
O curso era no próprio hotel, o que é ótimo, porque economiza o tempo para deslocamentos e, quase sempre, é possível subir ao quarto e dar uma descansada no intervalo de almoço. Chegando ao local, desanimei um pouco; ficava lá pros lados da Lubnor (quem conhece Fortaleza sabe que ali não é o melhor pedaço da orla). Daí prá frente, só decepções; quarto precisando de uma boa faxina, ar condicionado barulhento, problemas com a água quente do chuveiro... Pior ainda; o hotel era vizinho de uma espécie de vila de pescadores cuja gente, vista na luz difusa do entardecer, me pareceu ameaçadora e mal-encarada. Abandonando a idéia da caminhada noturna pela orla e do jantar fora, pedi comida do próprio hotel. Só que não era mesmo o meu dia; o filé de frango esturricado, acompanhado de uma massa grudenta, só fez piorar o meu humor (e olha que não sou do tipo que reclama de comida). As más notícias continuaram quando resolvi inspecionar o “Salão de Convenções”, onde aconteceria o curso; a iluminação era péssima, as cadeiras desconfortáveis, o som não funcionou... Para completar meu dia de cão, o pessoal da organização do curso não apareceu e nem deu notícias.
Fui dormir maldizendo a vida, e jurando que nunca mais ia entrar em outra fria destas. Tive pesadelos com o curso, com a sala, com a avaliação dos alunos... Como sou madrugador por natureza, acordei bem antes do início do horário de café da manhã do hotel e fiquei remoendo meu mau humor (que, com a fome, ficou muito pior, é claro). De repente, um barulho ao longe, parecendo fogos de artifício, me deixou curioso. Eu não sabia, mas ia começar uma das maiores lições que recebi na vida.
Sonolento e rabugento, fiquei algum tempo parado na varanda tentando acostumar os olhos à claridade da manhã cearense. Quando finalmente consegui enxergar direito, o espetáculo que se ofereceu foi de uma beleza rara; num mar azul claro, diversos barquinhos e jangadas seguiam um barco um pouco maior, enfeitado com bandeirinhas, que carregava o que parecia ser a imagem de uma santa. Os fogos vinham dali. E a melhor parte veio quando olhei para a praia; aqueles caras que na noite anterior me pareciam estranhos e agressivos estavam lá, acompanhados das mulheres e filhos, todos vestindo suas melhores roupinhas, embarcando sorridentes para se juntarem à procissão.
A “viagem” que aconteceu comigo a seguir eu nunca consegui entender, e é ate difícil de contar. A visão das jangadas no mar começou a ser embalada por uma canção de Dorival Caymmi, que não sei se era cantada pelo pessoal ou se vinha do meu próprio delírio; “Minha jangada vai sair pro mar, vou trabalhar, meu bem querer”... Senti a recordação agradável que esta música sempre me trouxe, de um passeio com a minha turma do colégio na praia de Atlântida, lá pelos meus quinze anos de idade (esclarecimento importante; esta Atlântida fica no litoral gaúcho, não é o continente perdido. Minha viagem não foi tão louca assim). Ato contínuo, desandei a chorar. E foi então que ouvi, claramente, a divina mensagem; “Ta reclamando de que? Você veio aqui trabalhar, está sendo muito bem pago, e vai ficar de frescura porque a comidinha não está boa, porque a água está fria? Olha prá esta turma aí embaixo! Não sabem o que é ar condicionado, não ganham metade do teu salário, e ninguém ta com esta cara de babaca! Entendeu, sua bichinha mimada? Faz o teu trabalho direito e pára de reclamar, porra!”. Sem dúvida, era o meu mentor espiritual; afinal, um cara que nem eu jamais mereceria um mentor bonzinho, muito menos politicamente correto. O sacana estava me dando um esporro, o recado que ele trazia de Deus era curto e grosso, exatamente o que eu precisava ouvir naquela hora. Afinal, todo mundo sabe que Ele não erra.
Meu transe durou uns quinze minutos. Eu olhava a cena, chorava e me xingava, olhava de novo, chorava mais ainda e me xingava em dobro. Quando finalmente consegui readquirir um mínimo de autocontrole, o hotel, a vida e o mundo não eram mais os mesmos. Ainda citando o mestre Caymmi, a jangada voltou só; o sujeito insuportavelmente chato e reclamão que chegara naquela varanda minutos antes, afundou no oceano e foi despedaçado por tubarões (que devem ter tido uma baita diarréia depois). O novo “eu” voltou para o quarto, lavou o rosto e desceu para tomar café com a alma pacificada e feliz. Não me perguntem como, nem porque; só sei que foi assim, diria o impagável personagem mentiroso representado por Selton Mello no filme “O Auto da Compadecida”.
Nem preciso dizer que, dali em diante, tudo deu certo. Logo apareceu no hotel um anjo chamado Andréia, enviado pela organização do curso (e pelos céus, tenho certeza) que, com aquela doce simpatia das nordestinas, arrumou soluções para todos os problemas da sala; as aulas transcorreram bem, a turma era ótima. E o toque divino se estendeu até os cozinheiros do hotel, que acertaram a mão e fizeram um almoço elogiado por todos nós.
Domingo, antes de embarcar de volta para casa, fui me despedir da varanda que serviu de cenário para o meu pequeno milagre. E o verso que me veio à cabeça desta vez foi de Renato Teixeira, nosso querido caipira-Pirapora-Nossa Senhora de Aparecida; “cada um de nós compõe a sua história, e cada ser em si carrega o dom de ser capaz... E ser feliz”.
Tenho certeza que meu mentor estava satisfeito. Ele, com o auxílio dos poetas, estes grandes mensageiros de Deus, cumprira com louvor a sua missão; fazer com que este discípulo imbecil entendesse que ser feliz é uma opção, quase uma obrigação, no meu caso. Captei vossa mensagem, divino Mestre! E posso dizer que “hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe, e só levo a certeza de que muito pouco eu sei... Eu nada sei”.
Amém.

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