sábado, 22 de dezembro de 2012

O meu conto de natal

Pessoal, agora é hora de esquecer o gerenciamento de projetos, a política, a cultura, e até o futebol (como se isto fosse possível). E vou encher o saco de vocês com a minha visão do natal, num conto que escrevi há algum tempo. Pode parecer meio depressivo para alguns, mas é o que eu vejo. E contem uma mensagem de amor - meio sutil demais, vá lá, mas é uma mensagem de amor e fraternidade.
Um bom natal prá todos nós!

Um filho de Deus


- É preciso amar/ as pessoas/ como se não houvesse amanhã...

A voz de um morto. Um morto, no rádio do carro, dizendo que é preciso amar as pessoas - e ainda por cima como se não houvesse amanhã. Um maluco, drogado, que morreu de AIDS... Bom, este, pelo menos, já resolveu a vida dele. Para mim, existe amanhã. Infelizmente. E, pior ainda, amanhã é Natal.

Dirigir um táxi, no dia de Natal... Só pode ser coisa de corno. Além de corno, endividado. É preciso pagar o aluguel, pagar as contas, pagar a diária, pagar os remédios, pagar o presente dos filhos (e alguém agüenta olhar para a cara deles e dizer que está sem grana?). É preciso amar, as pessoas... Será?

Dirigir um táxi, no Rio de Janeiro... Eu devia ter estudado. Ou ter jogado futebol, ou ter feito alguma coisa na vida... Mas agora não dá prá pensar nisto. Correr perigo na Linha Vermelha, na Linha Amarela, no Aterro, em cada sinal, em cada passageiro... Aquela mão estendida pode ser o pão nosso de cada dia ou o fim da féria, o fim da vida... Precisava ter lido sobre aquele motorista de táxi que os traficantes executaram na Tijuca?

Mas agora não dá para pensar. Afinal, podia ser pior. Mais um sinal vermelho, mais daqueles meninos fazendo malabarismos, no dia de Natal, quem é que agüenta? As mãozinhas estendidas, meu filho, não tenho trocado, o passageiro se encolhendo no banco de trás e vociferando “são bandidos, vivem cheirando cola, onde está a polícia que não faz nada...”. Será que é possível amar estas pessoas? Aquele bando vindo ali, uma menina grávida no meio deles, quase uma criança carregando outra na barriga, ainda têm disposição prá sacanagem, os desgraçados...

Não dá para pensar muito. O dia vai raiar daqui a pouco, mal deu prá pagar a diária, hoje ainda tem o jantar na casa da sogra, com aqueles parentes chatos da mulher, toda aquela pentelhação... Gente que bebe demais, fala alto demais, gosta de pagode demais, no ano que vem juro que dou um jeito de juntar dinheiro para ir prá casa do meu pai, lá em Minas... Coitado do velho vai ficar naquela tristeza toda, desde que mamãe morreu ele sempre fica assim, no ano que vem vou lá, nem que seja sozinho, que se foda minha mulher e toda a família dela...Os meus filhos vão ter que entender... Sei lá...

De novo na mesma esquina. Os mesmos meninos, bandidos, infelizes, drogados. Só que tem alguma coisa acontecendo... Paro o carro num impulso. Deitada na calçada, a menina grávida, os outros apavorados em volta, mais meninos e menos bandidos do que nunca, será que ninguém vai ajudar? Tenho experiência, já levei muita mulher em trabalho de parto para o hospital antes. Só que agora não tem mais tempo para nada; o bebê já está saindo. Ainda ouço, no fundo da cabeça, a voz chata da minha mulher dizendo “porque você foi se meter nisto...” mas não posso mais parar. Tento pegar uma toalha no carro, mas o bichinho já está nos meus braços, berrando. Corto o cordão umbilical com um canivete velho, meus gestos são mecânicos, estou com sono, porque fui me meter nesta? Lembro de um médico que levei pro Miguel Couto um dia, me dizendo que este pessoal não pega infecção, tem imunidade completa, só que eu podia pelo menos ter limpado o canivete... Bem, azar, agora já foi. Serviço terminado, o dia clareando, o moleque berrando nos meus braços, porque me deu esta coisa de chorar de repente?

Mais um esfomeado no Mundo... prá nos assaltar, prá cheirar cola, prá ser vítima de bala perdida, prá perder pênalti em final de campeonato... Mais um filho da puta prá atrapalhar a nossa vida, prá ser avião de traficante, prá bolinar a professora, prá estuprar, matar, morrer...

Mais um filho da puta no Mundo! Sem fralda, sem teto, sem terra, sem vergonha, sujando minha roupa com esta porra deste sangue, minha mulher vai me matar quando eu chegar em casa, mais um desgraçado prá compartilhar da nossa sujeira, da nossa fome, da nossa injustiça...

Tudo, menos dizer que alguém pode olhar nos olhos desta coisinha de forma quase humana, querer pensar em se apaixonar por um filho da puta destes, e ficar aqui como um ridículo, abraçado neste filhote de coisa nenhuma, chorando feito um babaca...

Já é dia claro. Viro as costas para a cena. A vida não é um conto de Natal, não vai ter milagre nem presente, muito menos estrela de Belém, os reis magos não vão aparecer, nem se dignar a mandar um recado, dando a desculpa de que ficaram presos no engarrafamento. Quase jogo o moleque nos braços da mãe, que balbucia um “obrigado, moço”. Não vou levar ninguém para a porra de hospital nenhum. Deixo o filho da puta com a puta que o pariu, cercado dos filhos da puta que vão conviver com ele. E eu – o maior filho da puta de todos – vou voltar para casa, tirar esta maldita roupa suja do sangue fedorento deste filhote de coisa ruim, e ainda ouvir um sermão da minha mulher. Um bando de infelizes que a vida juntou num momento de merda, chafurdando na miséria humana, na desgraça de uma cidade desgraçada.

A música no rádio insiste em dizer que é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã. Se eu não parar de chorar vou acabar batendo com o carro, e aí vai ser muito pior. Será que eu ajudei no parto do Menino Jesus? Deixa de ser burro, seu babaca, era só mais um filho da puta!

É dia de Natal. O locutor agora fala em amar o próximo como a si mesmo. Eu sei que é só uma propaganda a mais, mas de repente tudo começa a fazer sentido, na minha cabeça que já raciocina com dificuldade (preciso chegar logo em casa, tô morrendo de sono); é preciso amar as pessoas, amar o próximo - mesmo que ele seja um filho da puta. Sim, porque eu também sou um filho da puta. É o milagre de Natal; todos somos filhos de Deus. Inclusive – especialmente, talvez – os filhos da puta. Como este desgraçado, sem nome, sem teto, que eu ajudei a botar neste Mundo, e que talvez vá me assaltar e me matar um dia. Ter amor por quem a gente odeia, por quem odeia a gente. Como este filho da puta que acaba de cortar a minha frente – só faltava bater com o carro, agora!

O sol está forte, o calor já começa a incomodar. E eu vou ter que dormir suando, porque o ar condicionado do quarto está quebrado e eu não tenho dinheiro prá consertar. Pior que eu, só o menino Jesus e a mãe dele, que vão ficar ali pela rua mesmo. É dia de Natal. Na esquina, um cartaz qualquer fala em paz na Terra aos homens de boa vontade – e fico pensando se isto inclui todos os filhos da puta. Como eu e este moleque, e a mãe dele, e os outros do bando, e até a minha mulher, que vai me encher o saco quando eu chegar em casa, e toda a família dela. Todos nós.

Estou chegando em casa. Meus olhos estão vermelhos, de choro e de sono. Vou tirar esta roupa, vou dormir, a vida vai recomeçar. O menino Jesus vai passar o seu primeiro dia neste Mundo, nesta rua, neste calor. Não vai ser fácil para ele, não é fácil para mim. Mas é preciso amar, ter esperança, mais um ano vai, mais um ano vem... Não consigo nem pensar mais. O locutor no rádio começa a rezar a Ave Maria. Dentro da minha mente, as palavras se completam. Santa Maria, mãe de Jesus, rogai por nós, os filhos da puta. Os filhos de Deus.

Amém.

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