sexta-feira, 18 de maio de 2018

Há exatos sessenta anos o Brasil ganhou a sua primeira Copa do Mundo com planejamento meticuloso e obediência tática. Alguém já te contou esta historia?


Sim, você já ouviu o seu avô dizendo que o Brasil ganhou a Copa de 58 sambando com a bola no pé – tinha até uma musiquinha ufanista da época que dizia isto. Um time que jogava prá frente, e foi o único a fazer cinco gols em uma final de copa. A parte dos cinco gols na final é verdadeira, mas a história toda não é bem assim. Em ano de copa, aproveito para contar este causo na sua versão verdadeira, que é bem diferente da que foi consagrada. De certa forma posso dizer que fui testemunha ocular, afinal, tinha seis anos na época e sempre fui fanático por futebol.
A história, na verdade, começa algum tempo antes. Só para ter uma ideia do nível de amadorismo dos nossos cartolas de então, na Copa de 1954, na Suíça, o último jogo do Brasil na fase de grupos foi contra a Iugoslávia. O empate classificava os dois times – só que ninguém na delegação brasileira sabia disto. O resultado é que o jogo foi 1x1 e o nosso time se esforçou até o final buscando uma vitória que era totalmente desnecessária. Diz a lenda que o capitão iugoslavo Mitic, que arranhava alguma coisa em português, sem entender porque os brasileiros estavam se matando em campo, começou a dizer, baixinho, para quem passava perto dele; “empate é bom... empate é bom...”. Foi só no vestiário que o time ficou sabendo que estava classificado. No jogo seguinte, contra a poderosa Hungria de Puskas, o desgaste inútil, aliado à qualidade do adversário, resultou numa derrota por 4x2 e eliminação.
O resultado deste vexame, somado ao de 1950, já cantado em prosa e verso, fez com que a então CBD (Confederação Brasileira de Desportos – ainda não havia a CBF), tomasse providências interessantes. O recém-empossado presidente João Havelange resolveu que, para a Copa de 58, não teríamos apenas um treinador cuidando de tudo, como era o normal na época; formou-se uma comissão, incluindo, além do técnico Vicente Feola, um preparador físico (Paulo Amaral), um médico (Dr. Hilton Gosling), um dentista (Dr. Mário Trigo) e até um psicólogo (Professor Carvalhaes).
Pausa para falar em João Havelange; considero-o um dos maiores dirigentes esportivos da história do Brasil e do Mundo. A transformação do futebol no negócio bilionário que é hoje teve nele seu principal articulador. Administrador brilhante, quase genial, eu diria. Infelizmente se deixou levar por outros interesses e acabou muito mal a sua trajetória, mas isto é outro papo. Fecho o parêntese.
Inteligente, Havelange foi provavelmente o primeiro a entender que os brasileiros tinham técnica para enfrentar qualquer time do mundo; o problema era a falta de condições físicas e psicológicas. Nossos jogadores, em sua esmagadora maioria, vinham do Brasil do Jeca Tatu; tinham focos dentários, doenças infecciosas e uma preguiça macunaímica para exercícios físicos. Mário Trigo arrancou dezenas de dentes podres, Hilton Gosling cuidou até da alimentação deles, o rigoroso Paulo Amaral deu-lhes um condicionamento privilegiado e Carvalhaes teve a tarefa de convencê-los que eles não eram a pátria de chuteiras; iam apenas jogar um campeonato de futebol. A descontração, dizem, era muito auxiliada por Mário Trigo que, além de bom dentista, era, segundo informações da época, um excelente contador de “causos” e anedotas.
Nova pausa para falar no ambiente da época. O Brasil não conseguia passar de uma espécie de “terceira força” do continente; os uruguaios eram bi-campeões do Mundo e os argentinos os donos da Copa América (então chamado “Sul-Americano”). Entre os argumentos que tentavam justificar os nossos consecutivos fracassos, chegou-se a levantar a hipótese que o mal era que jogadores negros ou mestiços não tinham equilíbrio emocional para disputar jogos decisivos (?). Coincidência ou não, o time que estreou na copa de 58 tinha apenas um negro, Didi (no caso porque o reserva dele, Moacir, também era negro). Em todas as outras posições do time, o escolhido era o que tinha a pele mais clara; isto deixou de fora , entre outros, Djalma Santos, Zito, Pelé, Garrincha e Vavá, que acabaram entrando ao longo do campeonato. Até hoje não se sabe se o motivo foi este mesmo ou é apenas mais uma teoria conspiratória, mas...
Sabendo dos traumas, Feola e seus colegas resolveram estruturar o time de forma a evitar sofrer gols, coisa muito pouco usada em uma época de futebol muito mais ofensivo. A qualidade do grupo era muito boa, e o Brasil montou uma defesa fortíssima, com o excelente goleiro Gilmar, uma dupla de zaga entrosada no Vasco (Bellini e Orlando), um super-craque na lateral esquerda (Nilton Santos) e um marcador implacável na direita (De Sordi). Os jogadores de meio-campo (Dino Sani, mais tarde substituído por Zito, e Didi) ajudavam sempre, e o ponta-esquerda Zagalo, dono de um fôlego invejável, ajudava na recomposição defensiva (muito antes deste termo entrar em moda).
O fato é que o Brasil estreou na fase de grupos enfiando 3x0 na Áustria, depois protagonizou contra os ingleses o primeiro 0x0 da história das Copas, e fechou com um 2x0 contra os soviéticos, na partida eu marcou a estreia de Pelé e Garrincha. Nas quartas de final (vale lembrar que o torneio, na época, tinha apenas 16 times), foi a vez do País de Gales; outro jogo duro, 1x0 com um golzinho chorado de Pelé quase no fim da partida. Quatro jogos, sete gols a favor e zero contra, uma marca totalmente fora do contexto da época. Só para ter uma ideia a França, nossa adversária na semifinal, tinha, nos mesmos quatro jogos, a marca de 15 gols a favor e 7 contra, incluindo um incrível 7x3 nos paraguaios, no seu jogo de estreia. Não por outra coisa este jogo foi anunciado como o duelo entre o alegre e ofensivo futebol dos franceses e a feroz retranca brasileira.
Na hora da verdade, o Brasil fez um gol logo de cara, mas o genial atacante francês Just Fontaine conseguiu, finalmente, vazar a meta brasileira e deixou tudo igual. O jogo tinha um leve predomínio do Brasil quando, próximo dos 30 minutos, um incidente mudou a historia da partida; numa dividida forte com Vavá, o zagueiro francês Jonquet fraturou a perna. Como não havia substituições, a França ficou com um a menos, e o pior é que seus jogadores de frente não tinham o menor cacoete de marcar. Não tendo como recompor a defesa, eles assistiram Pelé fazer três gols no segundo tempo e o Brasil chegar a uma vantagem de 5x1 (no finalzinho Piantoni ainda diminuiu, fechando o placar em 5x2). Uma goleada totalmente fora do contexto normal de um jogo que poderia ser bem mais difícil.
Na final o Brasil pegou o time sueco, que era muito mais fraco que o francês (e, dizem as más línguas, só chegou lá graças a “apitos caseiros” nos jogos contra União Soviética e Alemanha, que tinham equipes bem melhores). Além disto, tivemos finalmente a participação de Djalma Santos, que substituiu o esforçado De Sordi na lateral direita e deu um verdadeiro show de técnica em jogadas com Garrincha. Nem mesmo o surpreendente gol de Liedholm, aos quatro minutos de jogo, abalou os brasileiros, que viraram e golearam com facilidade.
Resumindo, o que passou à historia foi a seleção da ginga, do samba, das goleadas – que só aconteceram nos dois últimos jogos. Mas quem levou o Brasil àquela conquista foi muito mais a seleção do planejamento e da obediência tática.
Reflexão final; por algum motivo que eu não consigo entender, parece que o brasileiro prefere se orgulhar do improviso e do tal “jeitinho” do que ficar feliz com um projeto muito bem planejado e executado. Vá entender...
E quem quiser que conte outra!

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